Quando alguém famoso se vai, ficamos reflexivos, ainda mais quando se trata de um ato induzido. Eu, como profissional da saúde formada pela Universidade de Brasília, quis trazer essa reflexão:
Hoje, dia 23 de outubro de 2024, faleceu na Suíça, aos 79 anos, Antônio Cícero, escritor membro da ABL. Ele foi diagnosticado com a doença de Alzheimer, que é responsável por cerca de 60% a 80% dos casos de demência em todo o mundo. A doença de Alzheimer é uma condição neurodegenerativa progressiva que afeta a memória, o pensamento e o comportamento.
Mediante os desafios impostos pela doença degenerativa, ele optou pelo suicídio assistido. Como é um procedimento realizado de forma consciente, ele decidiu deixar uma carta explicando a sensível e importante decisão de encerrar a sua vida.
Não irei publicar a carta nesta postagem, devido às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a cobertura de suicídios pela mídia, chamadas de “Prevenção do Suicídio: Um recurso para profissionais de mídia”, que, baseando-se em diversos estudos sobre o assunto, recomenda a não divulgação desse tipo de conteúdo, pois pode levar ao fenômeno Werther, a romantização do suicídio devido ao livro de Goethe.
É importante definir os seguintes termos: eutanásia, ortotanásia, suicídio assistido, distanásia e cuidados paliativos. As definições nem sempre são as mesmas para os pacientes, os cuidadores, os familiares e os profissionais da área de saúde, mas é importante defini-los; afinal, aquilo que não é nomeado não sofre limitação e é imprescindível a discussão sobre o impasse entre métodos artificiais para prolongar a vida, a atitude de deixar a doença seguir sua história natural e o procedimento de encerrar a vida de forma consciente ou não.
No que diz respeito à eutanásia, é a maneira de encerrar a vida devido a uma decisão do próprio paciente, porém praticada por um profissional da saúde.
Tipos:
Eutanásia ativa: Quando o médico administra diretamente medicamentos letais.
Eutanásia passiva: Quando tratamentos que mantêm a vida são interrompidos, permitindo que a pessoa morra.
O termo supracitado é ilegal no Brasil, porém é aceito em alguns países, como a Holanda e a Bélgica. É um ato intencional bem questionado. Se questionarmos a etiologia de ambas as palavras, elas são contraditórias. A palavra “eutanásia” vem do grego, composta por “eu” (bom) e “thanatos” (morte), significando literalmente “boa morte”, no sentido de aliviar algum sofrimento. Já a palavra “médico” vem do latim “medicus”, que significa “aquele que cura”. Ela está relacionada ao verbo “mederi”, que significa “curar” ou “tratar”, não está relacionada ao ato intencional de encerrar a vida do outro que está em tratamento. Ao meu olhar, é tirar o indivíduo da posição de médico e colocá-lo na posição de assassino.
O suicídio assistido, ao contrário da eutanásia, é permitido na Suíça. Foi o “procedimento” pelo qual o escritor Antônio Cícero escolheu encerrar a própria vida. Ao contrário da eutanásia, o paciente, por si mesmo, toma a ação de ingerir um medicamento letal, porém esse medicamento é prescrito por um médico que acompanha todo o processo, ressaltando que a execução é feita pelo próprio paciente.
No suicídio assistido, o paciente tem o controle e a responsabilidade final sobre sua morte. Mesmo assim, isso abre discussões sobre a atuação do médico nesse processo de morte, afinal, ele tem participação indireta quando prescreve um medicamento que pode matar alguém.
As leis sobre o suicídio assistido variam de país para país. Em alguns lugares, ambos são ilegais; em outros, uma das práticas pode ser permitida sob condições específicas (como em alguns estados dos EUA e países europeus). A eutanásia costuma enfrentar mais restrições legais do que o suicídio assistido.
Já a distanásia é um termo pouco conhecido, porém, muitas vezes praticada no campo da saúde. É conceituada como uma morte que resulta do prolongamento do processo da morte, através do prolongamento artificial da vida, também pode ser chamada de obstinação terapêutica. Porém, no decorrer dos tempos, a boa morte ou morte digna tem sido associada ao conceito de ortotanásia, que etimologicamente significa “morte correta” – orto: certo; thanatos: morte. Isso corresponde ao termo de morte desejável, no qual não ocorre o prolongamento da vida artificialmente, através de procedimentos que podem acarretar sofrimento, e nem encerra a vida de forma abrupta. A ortotanásia é a morte natural devido a alguma causa que interrompe a vida de forma mais pacífica e serena.
Na ortotanásia, não há intervenção intencional extrínseca de causar a morte, apenas a suspensão de tratamentos que prolongariam a vida artificialmente, deixando a doença seguir seu curso natural. Nessa ocasião, busca-se oferecer qualidade de vida diante do estado clínico e dignidade para enfrentar a terminalidade da vida de forma mais serena e pacífica possível. Os tipos de cuidados que recebem são chamados de cuidados paliativos.
O artigo “Redefining Palliative Care—A New Consensus-Based Definition” apresenta cuidados paliativos como o cuidado ativo e holístico de indivíduos de todas as idades que enfrentam sofrimento grave relacionado a doenças sérias. Os cuidados paliativos são oferecidos para qualquer pessoa que sofra de alguma doença ou condição clínica que ameacem a continuidade da vida, por meio do alívio do sofrimento, tratamento da dor e de outros sintomas de natureza física, psicossocial e espiritual. Esses cuidados não são somente para doenças graves e terminais, mas uma maneira de ofertar dignidade humana diante dos sofrimentos clínicos que se apresentam perante as limitações da medicina.
Me impressiona o aumento de procura e banalização da vida e do sofrimento, como se não tivesse sentido em ambos e a forma de lidar com isso é procurar onde seja um legalizado encerrar a própria vida, a sensação que me passa é que estão desacreditando da vida humana e da antropologia do homem de se colocar acima das circunstâncias, como Viktor Frankl um neuro psiquiatra relatou em seus estudos, para a formação da terceira escola de psicologia de Viena – A Logoterapia -, outra forma de ver isso, é a banalização do momento sagrado da morte, como se fosse uma fase qualquer, outro questionamento que eu faço além da relativização é o utilitarismo onde as pessoas só são cuidadas quando há utilidade ainda? Aonde está o senso de responsabiidade humana do cuidado e da humanização de olhar para outro no sentido noológico?
Por que uma pessoa desiste de viver? Quando há um sofrimento muito intenso e agudo, seja ele físico ou psicológico, até mesmo de ordem espiritual (no sentido antropológico).
Mas, se questionarmos qual é o limite do sofrimento, ele é subjetivo; cada um tem o seu limite para a dor. Contudo, quando se trata de lidar com essa dor insuportável, há diversas maneiras que não levam o indivíduo a optar por uma situação drástica, abrupta e irreversível.
No caso de um paciente que opta por cuidados paliativos (lembrando que são cuidados técnicos), sim, cuidados paliativos se optam, porque é preciso respeitar o livre-arbítrio de um ser humano, permitindo que o conforto esteja presente, que haja o alívio de dores e que exista dignidade até a hora da finitude da vida. Isso permite que haja o encontro com a morte de forma natural, de maneira mais pacífica e serena, ao contrário da eutanásia e do suicídio assistido.
Na eutanásia, ainda há a condição da possibilidade do indivíduo que optou por essa forma de encerrar a própria vida estar em uma situação de coma, de não estar consciente. O mesmo não ocorre no suicídio assistido, onde a própria pessoa ingere o medicamento letal. Neste último, o que eu mais vejo é o excesso da necessidade de controle, que vai além do instinto de sobrevivência dos animais. Como o ser humano é um animal também, é claro que ele também possui esse instinto.
O nascer e o morrer são fenômenos naturais da vida. Todo mundo passou pelo nascer e vai passar pelo morrer. O que acontece nesse intervalo é o que chamamos de vida, porém, não sabemos quando o encerramento dessa vida vai ocorrer. É o que uma paliativa oncológica, chamada carinhosamente de Anami, descreveu: vivemos a finitude crônica.
O problema do excesso de controle é que ele é fruto da neurose, da discordância do desejo. É a incapacidade de lidar com a dúvida, o medo de lidar com o sentir, o medo de sofrer, e a incapacidade de se colocar na condição mais humana que existe: a vulnerabilidade. É como a citação de Camus, um escritor existencialista, que bem definiu essa natureza: “O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é”.
Aceitar a imprevisibilidade da vida faz parte da maturidade humana; significa estar consciente da vulnerabilidade humana, da sua finitude e também do desamparo que consiste em viver e estar sozinho no sentir. Quando não se aceita a imprevisibilidade da vida, a pessoa se mostra presa na condição infantil da idealização, da fantasia de “não ser o que é”, a fantasia de querer controlar até os fenômenos naturais da vida. Não pediu para nascer e vir ao mundo, mas decide quando vai partir, porque, na fantasia, não acredita que possa dar conta daquele sofrimento. Quantas vezes não sofremos mais na imaginação do que na realidade?
“Eu cheguei aonde cheguei porque tudo deu errado.” — Rubem Alves
A frase do saudoso Rubem Alves é uma bela meditação para fazermos diante da vida. Quantas vezes não escolhemos mal? Quantas vezes na vida não colocamos no outro a responsabilidade de preencher o vazio da vida? No emprego dos sonhos? No carro comprado? No namorado perfeito? Nos filhos que ainda não nasceram? Quando chegamos a conquistar certas coisas, nos deparamos com o crucial humano: o vazio sempre vai existir. Ele é o lugar que o desejo pode se manifestar e que muitas vezes escolhemos mal, ou idealizamos, fantasiamos tanto que a realidade nos obriga a ficar de joelhos.
A morte não é nossa inimiga; ela, na verdade, é uma ótima conselheira.
A morte é uma etapa natural da vida que é preciso que o homem ocidental resgate. Todos estamos vivendo dentro da finitude crônica; ela vai acontecer para o Brad Pitt, para o Elon Musk, para seus pais, para o morador de rua que você ignorou e também para você. A morte é uma boa conselheira porque ensina a ter consciência de que não temos todo o tempo do mundo. A morte é o final que dá sentido ao valor da vida; é ela que auxilia a analisar a vida e como estamos gastando nosso tempo. Todo dia, você recebe 24 horas; o que tem feito delas? (Tempus fugit)
Talvez o maior problema para alguns não seja o medo da morte, do desligar, de largar o corpo ali e não ter mais controle sobre ele. Talvez o maior sofrimento para alguns seja admitir a vulnerabilidade com coragem perante a vida; é assumir que precisa de cuidado.
Por mais difícil que seja o amor ou amar, é mais difícil ainda se permitir ser amado. Isso, para alguns que nunca tiveram isso de verdade, que não podiam errar, que sentiam que só eram amados quando eram úteis, pode ser extremamente assustador e vergonhoso. Eu me deixo ser cuidado quando não útil? Eu me permito não ser útil, quando a condição externa e imprevisível da vida me castrar? (sentido psicanalítico de limitação do desejo)
A morte é um momento sagrado e único na vida de cada um, assim como o nascimento. É sempre importante estarmos rodeados de bons acompanhantes e de apoio nos momentos difíceis da vida e também nos sagrados. Se reunimos para ver um nascimento, também podemos nos reunir e oferecer conforto e dignidade para quem está partido. A busca pela condição ideal de existir não pode ser o caminho escolhido para encerrar a vida.
O suicídio assistido pode ser uma saída; devemos respeitar a memória de quem optou pela ação, mas não deveria ser a primeira opção.
Que a trajetória de Antônio Cícero possa nos fazer refletir sobre a vida, a morte e, acima de tudo, a busca pela esperança. É preciso lembrar que somos seres sociais e que a vulnerabilidade é a força motriz que nos conecta uns aos outros, porque ser vulnerável implica, acima de tudo, a coragem de ser imperfeito. Aquele que não é perfeito é um ser humano, ou seja, sempre vai faltar algo; sempre vai ter um vazio, e que bom que ele existe.
É através dele que podemos amar, desejar e buscar nosso desejo. Se fôssemos perfeitos, não haveria falta. Aquilo que não falta já é preenchido; não precisaríamos do outro, mas ainda bem que existe o vazio. É uma pena que algumas pessoas não saibam lidar com ele, inclusive muitos filósofos como Schopenhauer.
A vida é um bem que deve ser preservado, e o ato de morrer não pode ser tratado como um produto do desejo, mas um fenômeno natural, também sagrado, e deve ser vivido com dignidade, da forma mais serena e pacífica possível, rodeado de quem a gente ama, talvez isso seja o significado de uma morte digna.
Vou encerrar com a frase da Ana Michelle, uma mulher que encarou de frente as imprevisibilidades da vida, que permitiu também viver suas vulnerabilidades. Como ela mesma se referia a viver: “Eu danço com a vida e com o tempo.”
“Quando a morte me encontrar, ela vai me encontrar vivendo…”
E foi assim que a morte encontrou Anami em 2023, aos 40 anos: vivendo.
Referências Bibliográficas:
LANE, C.; HARDY, J.; SCHOTT, J. Doença de Alzheimer. European Journal of Neurology, v. 25, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1111/ene.13439. Acesso em: [23 de outubro de 2024].
RIBEIRO, J. R.; POLES, K. Cuidados Paliativos: Prática dos Médicos da Estratégia Saúde da Família. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 43, n. 3, p. 62-72, jul. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1981-52712015v43n3RB20180172. Acesso em:[23 de outubro de 2024] .
[AUTOR DESCONHECIDO]. Eutanásia e seus aspectos éticos. Revista de Ética e Saúde, n. 3, p. 1-12, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-81232013000900029. Acesso em: [23 de outubro de 2024].
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